Se cada hora vem com sua morte
se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel
você perguntará porque cantamos.
Se nossos bravos ficam sem abraços
se a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir de vergonha
você perguntará porque cantamos.
Se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro
você perguntará porque cantamos.
Cantamos porque o rio está soando
e quando soa o rio/soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome o seu destino.
Cantamos pela infância, e porque tudo
e porque algum futuro, e porque o povo.
Cantamos porque os sobreviventes
e os nossos mortos querem que cantemos.
Cantamos porque o grito só não basta
e já não basta o pranto nem a raiva
cantamos porque cremos nessa gente
e porque venceremos a derrota.
Cantamos porque o sol nos reconhece
e porque o campo cheira a primavera
e porque nesse talo e lá no fruto
cada pergunta tem sua resposta.
Cantamos porque chove sobre o sulco
e porque somos militantes dessa vida
e porque não podemos nem queremos
deixar que a canção se torne cinzas.
Mário Benedetti
segunda-feira, 2 de março de 2009
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