Ainda quando um feto
bem menor que a espera
de alguém que tanto paquera
uma flor desabochar
já tinha o nome Dandára
pela raça e pela guerra
e o sonho que um dia ela
seja assim tão camarada
como foram grandes nomes
e outros que ainda vivem
ideias e passos firmes
em nome da liberdade.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

A fúria da beleza


Estupidamente bela
a beleza dessa maria-sem-vergonha rosa
soca meu peito esta manhã!
Estupendamente funda,
a beleza, quando é linda demais,
dá uma imagem feita só de sensações,
de modo que, apesar de não se ter consciência desse todo,
naquele instante não nos falta nada.
É um pá. Um tapa. Um gole.
Um bote nos paralisa, organiza,
dispersa, conecta e completa!
Estonteantemente linda
a beleza doeu profundo no peito essa manhã.
Doeu tanto que eu dei de chorar,
por causa de uma flor comum e misteriosa do caminho.
Uma delicada flor ordinária,
brotada da trivialidade do mato,
nascida do varejo da natureza,
me deu espanto!
Me tirou a roupa, o rumo, o prumo
e me pôs a mesa...
é a porrada da beleza!
Eu dei de chorar de uma alegria funda,
quase tristeza.
Acontece às vezes e não avisa.
A coisa estarrece e abre-se um portal.
É uma dobradura do real, uma dimensão dele,
uma mágica à queima-roupa sem truque nenhum.
Porque é real.
Doeu a flor em mim tanto e com tanta força
que eu dei de soluçar!
O esplendor do que eu vi era pancada,
era baque e era bonito demais!
penso, às vezes, que vivo para esse momento
indefinível, sagrado, material, cósmico,
quase molecular.
Posto que é mistério,
descrevê-lo exato perambula ermo

dentro da palavra impronunciável.
Sei que é desta flechada de luz
que nasce o acontecimento poético.
Poesia é quando a iluminação zureta,
bela e furiosa desse espanto
se transforma em palavra!
A florzinha distraída
existindo singela na rua paralelepípeda esta manhã,
doeu profundo como se passasse do ponto.
Como aquele ponto do gozo,
como aquele ápice do prazer
que a gente pensa que vai até morrer!
Como aquele máximo indivisível,
que, de tão bom, é bom de doer,
aquele momento em que a gente pede pára
querendo e não podendo mais querer,
porque mais do que aquilo
não se agüenta mais,
sabe como é?
Violenta, às vezes, de tão bela, a beleza é!

O Monstro

Pelas margens sagradas do Eufrates, que fugia então, sem espuma e sem ondas, caminhavam, na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a Morte. Eram dois espectros longos e vagos, sem formas definidas, cujos pés não deixavam traços na areia. De onde vinham, nem elas próprias sabiam. Guardavam silêncio e marchavam sem ruído olhando as coisas recém-criadas.
Foi isto no sexto dia da criação. Com o focinho mergulhado no rio, hipopótamos descomunais contemplavam, parados, a sua sombra enorme, tremulamente refletida nas águas. Leões fultos, de jubas tão grandes que pareciam, de longe, estranhas frondes de árvores louras, estendiam a cabeça redonda, perscrutando o deserto. Para o interior da terra, onde o solo começava a cobrir-se de verde, velando a sua nudez com um leve manto de relva moça, que os primeiros botões enfeitavam, fervilhava um mundo de seres novos, assustados, ainda, com a surpresa miraculosa da vida.
Em passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando, sem interesse, as maravilhas da criação. Raramente marcham lado a lado. A Dor vai sempre à frente, ora mais apressada, ora mais vagarosa; a outra sempre no mesmo rítimo, não se adianta, nem se atrasa.
Súbito, como se a detivesse um grande braço invisível, a Dor estacou, deixando aproximar-se sua companheira.
- Para que mistério - disse, a voz surda - para que mistério teria Jeová, no capricho de sua onipotência, enfeitado a Terra de tanta coisa curiosa?
A Morte estendeu os olhos perscrutadores até os limites do horizonte, abrangendo o rio e o deserto, e observou, num sorriso macabro que fez rugir os leões:
- Para nós ambas, talvez...
- E se nós próprias fizéssemos, com as nossas mãos, uma criatura que fosse, na Terra, o objeto carinhoso de nossos cuidados? Modelados por nós mesmas, o nosso filho seria, com certeza, diferente dos auroques, dos ursos, dos mastodontes, das aves fugitivas dos céus e das grandes baleias do mar. Tra-lo-íamos, eu e tu, em nossos braços, fazendo do seu canto, ou do seu urro, a música do nosso prazer... eu o traria sempre comigo, embalando-o, avivando-lhe o espírito, aperfeiçoando-lhe a alma, formando-lhe o coração. Quando eu me fatigasse, toma-lo-ías, tu, então, no teu regaço... Queres?
A Morte assentiu, e desceram ambas à margem do rio; onde se acocoraram sombrias, modelando seu filho.
- Eu darei a água - disse a Dor, mergulhando a concha das mãos, de dedos esqueléticos, no lençol vagaroso da corrente.
- Eu darei o barro - ajuntou a Morte, enchendo as mãos de lama pútrida, que o sol endurecera.
E puseram-se a trabalhar. Seca e áspera, a lama se desfazia nas mãos da oleira sinistra que, assim, trabalhava inutilmente.
- Traga mais água - pedia.
A Dor enchia as mãos no leito do rio, molhava o barro, e este, logo, se amoldava, escuro, ao capricho dos dedos magros que o comprimiam. O crânio, os olhos, o nariz, a boca, os braços, o ventre, as pernas, tudo se foi formando, a um jeito, mais forte ou mais leve, da escultora silenciosa.
Horas mais tarde, possuia a Criação, um bicho desconhecido. Plagiado da obra divina, o novo habitante da Terra não se parecia com os outros, sendo uma reminiscência deles. A sua juba era do leão; os seus dentes, do lobo; os seus olhos, os da hiena; andava sobre dois pés como as aves.
Repelido pelos outros seres, marchava, assim, o Homem, custodiado pela Dor e a Morte. No seu espírito inseguro, surgiam, as vezes, interrogações inquietantes. Certo, se aqueles seres se assombravam à sua aproximação, era porque reconheciam, unânimes, sua condição superior. E assim refletindo, comprazia-se em assustar as aves e os animais que lhe pareciam mais fracos.
Um di, porém, orgulhosas de seu filho, as duas se desavieram.
- Quem o criou fui eu! - dizia a Morte - Fui eu quem contribuiu com o barro!
- Fui eu! - gritava a outra - Que farias tu, sem a água que amoleceu a lama?
E como nenhuma voz conciliadora as serenasse, resolveram, as duas, que cada uma tiraria de sua criatura a parte com que havia contribuído.
Abrindo os braços, a Dor lançou-se contra o mostro, apertando-o violentamente. A água que o corpo continha, subiu de repente aos olhos do Homem, e começou a cair, gota a gota... Quando não havia mais água que espremer, a Dor se foi embora. A Morte aproximou-se então do monte de lama, tomou-o nos braços e partiu...